O banco de pedra debaixo da parreira
Sentada no baloiço tosco do pátio da tia, Cilinha fingia-se no carrossel da festa da aldeia. Ouvia-lhe a música, trazida pelo vento, quase sentia os cavalinhos a subir e a descer.
A prima Idalina e o namorado Tomás lá estavam no banco de pedra debaixo da parreira. A namorar, como todos diziam, a conversar, pensava Cilinha. Que seria exatamente isso de namorar? Algo complicado de perceber, ainda mais por ter que estar presente, sem entender porquê.
- Cecília! - chamou a tia da janela.
Desceu do baloiço, deu uma corridinha e aceitou a ordem de lavar as mãos na torneira do tanque. Sacudiu-as depois, enxugou o resto ao vestido e aceitou o pão com manteiga que a tia lhe estendeu. Horas do lanche, era preciso comer mesmo sem vontade senão a tia ralhava, depois contava à mãe, depois a mãe ralhava também... O melhor era comer, evitavam-se chatices.
Porque é que os adultos não tinham que lanchar também? A tia ainda perguntou aos namorados se queriam alguma coisa mas nem esperou a resposta, saiu da janela e lá foi para dentro a ajeitar o avental como costumava fazer.
Cilinha foi comer o pão no vai e vem do baloiço. Tomás chamou-a à atenção:
- Cilinha, não se come a andar de baloiço, podes engasgar-te ou ficar mal disposta!
Já sabia isso mas tinha uma certa tendência para contrariar. Como foi o Tomás a dizer, desceu do baloiço e sorriu-lhe.
Entre o baloiço tosco do pátio da tia e o banco de pedra debaixo da parreira havia uma distância de alguns metros, 15 anos de diferença da prima, um chão antigo de pedra e alguns vasos com plantas.
O Tomás estava "na tropa", a cumprir o serviço militar obrigatório, às vezes aparecia fardado, quase sempre de surpresa, e Cilinha era chamada para andar no baloiço ou para passear com eles. Num dia em que choveu muito, ficaram todos na janela da casa de jantar à espera que parasse.
O tempo é que não parava. No ano seguinte Cilinha entrou para a escola. Foi aprender muitas coisas numa sala com um crucifixo e uma fotografia do Salazar. Passado um mês o Tomás foi "para fora", para o Ultramar, mais propriamente para a guerra de Angola, uma das "Províncias Ultramarinas", nome este justificado por "Portugal não ter colónias", segundo o que se aprendia na escola.
Mal o Tomás partiu voltou o primo Eduardo, no meio de uma grande festa, foram mortas muitas galinhas, convidaram o "Troncas" da concertina e estava também o Gaspar do saxofone, tocaram juntos e em separado. A razão da festa era o Eduardo "vir bem"...
O Tomás não veio bem, não veio mesmo, o Tomás desapareceu no mato depois de uma emboscada. Nunca apareceu nem vivo nem morto, dele só vieram notícias, avessas umas das outras, nunca se soube nada de concreto. Esperou-se e receou-se sempre um telegrama de condolências do Ministro do Exército mas tal nunca aconteceu. Passado muito tempo, o nome do Tomás apareceu nos jornais numa lista de "desaparecidos em combate" mandada publicar pelo Ministério da Guerra. A mesma informação nunca chegou à família nem à Idalina.
A mãe doente e debilitada do Tomás não aguentou e morreu. O pai ficou meio louco e envelheceu numa instituição onde acabou por morrer.
Com 72 anos, o rosto da Idalina conserva ainda alguma beleza e uns olhos lindos, de um azul celeste e doce. Vive na casa que foi dos pais, onde já não há baloiço, onde tudo foi transformado e remodelado. Tudo menos o banco de pedra debaixo da parreira. A prima Cecília visita-a sempre que pode. Tomam chá, conversam, planeiam coisas e sentam-se no banco de pedra debaixo da parreira... onde esperam o Tomás...
(Imagem Wikipédia)
Monumento aos combatentes
do Ultramar - Belém