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Amor às Kuartas

Aqui fala-se de amor às quartas-feiras

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Amor às Kuartas

26
Abr17

A quinta

Kalila

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Uma flor delicada ondeava ao vento espreitando as visitas por cima do muro. Duvidava-se que a campainha tocasse algures, tal era o ar ferrugento do dispositivo. Mas tocou. E apareceu um sujeito de meia idade que abriu os portões. 

Os sorrisos da praxe depois de estacionar, os portões encerrados de novo, o sujeito de meia idade quase aos pulinhos para ser encantador, um cão rafeiro de ar simpático a cheirar os sapatos e estava perspetivada mais uma linha da lista de quintas para o casamento. Era a única que não tinha fotos na publicidade, a não ser daquela entrada algo majestosa, por isso era um verdadeiro mistério para os noivinhos. Talvez até fosse esse o motivo do menor enfado do Pedro. Até aí tinha visto tudo quase contrariado, sem grande atenção a nada, apenas presente porque a isso se sentia obrigado. Era o seu casamento mas porque raio tinha que dividir a sua já tão pouca paciência por tantas opções de escolha?

Nada a fazer! Eliana era mesmo assim em tudo, inconformada, insatisfeita, extremamente difícil de contentar, sempre múltipla de possibilidades e alternativas.

O senhor da quinta revezava-se de gentilezas e objetividades, com um álbum enorme de casamentos e festas ali efetivados enquanto ia mostrando as salas, as eventuais decorações, os pátios, os jardins, uma panóplia de possibilidades de acompanhamentos musicais e uma imensidade de menus, tipos de loiça e outras especificidades.

Eliana ia tentando absorver toda a informação, Pedro perdera-se já numa das salas que mantinha ainda a decoração do último evento: balões, borboletas e pássaros de papel a saírem de algo a imitar fogo. Achou estranho, perguntou:

- Foi uma festa infantil?

O senhor da quinta desequilibrou-se no meio daquela espécie de saltitar, rodou sobre um dos calcanhares, puxou a porta da sala, tossicou, levou a mão aos cabelos, coçou o queixo e tentando sorrir naturalmente disse:

- Não, não fazemos festas infantis. Foi outro tipo de comemoração... um divórcio. Fomos inovadores nesta área e temos tido muita procura...  

(imagem Pixabay)

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19
Abr17

Amor e uma cabana

Kalila

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Não era bem cabana, nem casinha, nem barraca, deve ter sido um abrigo de lenha noutros tempos. A casa ruíra quase toda, os muros tombaram, a natureza foi tomando conta de tudo, restou de pé o abrigo, atapetado de pedra, coberto de telha antiga. A ruína de uma parede da casa era um dos lados, do outro pedra solta, atrás o que restava do muro, na frente uma porta e uma janela sem as mesmas. 

Alberto costumava usar-lhe a sombra no verão depois da caminhada desde a aldeia de baixo. Uma árvore frondosa ajudava à frescura do lugar.

Ana conhecera-a no meio de uma chuvada inoportuna que estragou o seu passeio desde a aldeia de cima.

O lugar abrigava a calma do abandono em ruínas. Restos de canteiros, capoeiras e um tanque antigo de lavar roupa ajudavam a sonhar com passados românticos de família feliz, talvez remediada, voltada para o trabalho da terra, talvez mesmo rica, voltada para o deslumbre da paisagem.

Por algum motivo, Alberto e Ana nunca se encontravam. Passavam por ali, desfrutavam da vista, sentavam-se ou não no abrigo, sempre em dias ou horas diferentes. As aldeias dos dois, quase à mesma distância dali, guardavam o segredo do sítio. Na aldeia de baixo dizia-se que os proprietários tinham sucumbido todos num incêndio. Na aldeia de cima falava-se de outros eventos, como maleitas de saúde dizimadoras, ataques de lobos ferozes e uma derrocada, tudo misturado e dramatizado, bem ao gosto popular. Ao certo ninguém sabia de nada, nem tão pouco se alguém por ali tinha perecido ou simplesmente rumado a outras paragens.

Conhecida como "Ana da Azenha" por a sua casa na beira do rio apresentar vestígios de uma, Ana tinha sido professora primária noutra aldeia mais distante, onde casou, enviuvou em sete anos e nunca chegou a ser mãe.

Conhecido como "Beto da Alice", nome da sua mãe, Alberto era um solitário por opção, dedicado aos livros e à pintura depois de um casamento falhado.

Ambos aposentados do estado, ele de uma repartição pública na sede do concelho, não se conheciam a não ser de vista em eventos populares numa ou noutra aldeia. Nunca falaram, nenhum sabia o nome do outro, eram próximos em idade mas distantes na forma de ver o mundo. Ela dedicada a artes manuais que lhe deixavam a cabeça liberta, ele à pintura e à escrita, sendo a pintura a sua principal forma de expressão e mesmo de rendimento, enquanto a escrita apenas o distraía. Em comum tinham o gosto pelas caminhadas, aqueles passeios magníficos pela natureza que os levavam sempre até aquele lugar perdido no tempo e desencontrado no tempo dos dois.

Ambos reparavam nos vestígios que alguém deixava: o ajeitar dos toros de lenha velha para servir de acento, umas pedrinhas em pirâmide no ex-parapeito da janela e algo curioso como o resto de uma jarra antiga repleta de flores do campo, devidamente atestada de água, sobre uma pedra quadrada, que devia ter sido um banco, colada a uma das paredes meio caídas da antiga casa.

O que de início foi só coincidência e acasos engraçados, transformou-se pouco a pouco em algo mais. Nenhum sabia quem era o outro que por ali passava ou ficava. Ambos começaram a ficar curiosos com aquela presença misteriosa. Ana sonhadora com uma eventual amiga de gostos também ruinosos e campestres, Alberto antevendo uma jovem linda, sonho de qualquer romântico da sua proveta idade. Imaginava-a a subir o morro, maravilhosa e bela, de cabelo ao vento, num vestido leve e esvoaçante... Chegado a casa ria-se de si próprio e daquele sonho. Por mais que o espelho lhe dissesse que continuava a ser um homem interessante para o sexo oposto a visão sonhadora de uma menina bonita, qual anjo dos céus, a frequentar umas ruínas no meio do campo e do nada era já demasiado delirante para ainda ansiar conhece-la e, quiçá, conquista-la! Meninas bonitas têm mais o que fazer do que andar pelo campo! Seria um homem? Algum "entradito" como ele, sem muito que fazer? Não, a visão feminina e juvenil era muito mais inspiradora e alegre só por si! Depois ainda vinha a sua arte figurativa em que a menina bonita começou a ter rosto, ora maravilhoso e celestial, ora sorridente e algo lascivo. Foi acrescentando a figura feminina às suas paisagens, sempre etérea, divina e preciosa... Escreveu também sobre ela, sempre na base do mistério, como se mesmo fisicamente fosse alguém de aura espiritual...

Ana não sonhava tanto, apenas imaginava uma outra mulher a deambular por ali, alguma maluca como ela, farta de cidades, vilas e aldeias, feliz só assim, consigo própria, a andar pelo campo.

Um dia Alberto deixou um poema preso com uma pedra no acento de toros. Falava do mistério daquela presença, sugeria um encontro quase delirante de "um sonho ser real" e outras acrobacias poéticas. Estava escrito à mão, numa caligrafia exemplar, e na assinatura acrescentou o nascimento: 1947. Por algum motivo se sentiu impelido a isso, não sabia explicar, foi algo que lhe pareceu natural na altura. Assustar-se-ia a sua "menina" com tanta franqueza? Ou riria de um velho que lhe deixava poemas? Mas se tudo era um sonho e até brincadeira porque não alimenta-lo com mais sorrisos?

Foi a vez de Ana sonhar e imaginar e sucumbir ao mistério quando encontrou o poema. Havia uma sugestão de data e hora do dia, olhou para o relógio e faltava pouco tempo. Que fazer? Fugir dali com o susto de alguma falsa esperança? Ficar e conhecer alguém que pouco lhe importava quem fosse até aí? Experimentar o medo de poder ser alguém demente, tarado ou mesmo criminoso?

Mas não teve tempo de pensar, a expectativa de Alberto impeliu-o para o local ainda antes da hora. Ana viu-o a subir o morro, quase apavorada. Que fazer, assim de repente? Precisava que algo lhe iluminasse o espírito, lhe levasse o medo e lhe tirasse as dúvidas...

Já não havia hipótese, ele já a vira!

Os passos dele desaceleraram quase automaticamente, via uma senhora de idade (da sua idade!), à distancia parecia elegante, talvez bonita, vestida como quem passeia pelo campo... E o vestido vaporoso? Os cabelos compridos? E a juventude? Onde estava a sua menina misteriosa? O que é que aquela velha tinha feito à sua menina? Seria a bruxa má? Apeteceu-lhe voltar para trás, tornar a perseguir o sonho mas no sentido inverso, para bem longe dali...

Ana conseguiu esboçar um sorriso, ainda de poema na mão, enquanto ele se aproximava cada vez mais devagar. Não tinha nenhum ar medonho, aquele Alberto que afinal não era mulher, era até muito bem apessoado para não dizer lindo, que não fica bem a uma senhora... Tão bonito, tão interessado e ainda por cima poeta?

Quer dizer, interessado, só no poema, parece que ao vivo o interesse fugira-lhe para algum lugar! Ana tinha já vontade de rir da situação. Conteve-se a custo, tentou manter a pose da gentileza mas estava prestes a desatar a rir. Reconheceu-o vagamente de o ver na região e talvez por lhe conhecer a expressão habitual podia perceber que estava desolado!

Acabou por ser ela quem primeiro falou e desanuviou o ambiente com uma gargalhada. Apresentaram-se, riram-se ambos com a desilusão dele. Ela ainda o "picou" com um "lamento não ser mais bonita!" no meio de gargalhadas e ele foi cortês, disse-lhe que era linda, encantadora, mesmo, não tinha a ver com isso, "apenas com um sonho de um velho tolo, que não sabe atualizar a imaginação conforme a sua própria idade". Riram-se ambos, ela com mais gosto. Ficaram a conversar nos toros de lenha velha, sentiam-se amigos, por certo nunca seriam nada mais do que isso mas todos os futuros são sempre uma grande incógnita, mesmo que a juventude já tenha partido há muito.

(imagem rgbstock.es) 

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12
Abr17

20 anos a ver o mar

Kalila

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Som de gargalhadas em mesa próxima. O vento ia trazendo folhas da árvore. Uma rajada mais forte levou o guardanapo dela. Ele ajeitava a cadeira, incomodado com o vento na esplanada. 

Ela olhava o mar, ele o céu que ameaçava chuva.

Vinte anos de esplanada ao domingo à tarde, vinte anos de contemplação do mar. Os silêncios cómodos tinham-se instalado havia algum tempo. Ela sonhadora, sem assunto viável. Ele contrariado, sem assunto plausível.

Vinham ali porque sim, porque tinham namorado ali, porque ela gostava do mar, porque ele não via interesse em ir a outro sítio. Também não via interesse em estar ali, principalmente com vento e ameaças de chuva. Mas era uma esplanada como outra qualquer, onde se bebia café. E via-se o mar...

O que é que ela veria no mar? E nele? Ainda veria alguma coisa nele?

O mar rugiu nas rochas e o vento despenteou-lhe as ondas. Ela estudava o mar atentamente, como se disso dependesse algo de muito importante. Ele estava de costas para o mar, fugindo dos efeitos do vento. 

Era sempre ele quem primeiro se levantava. Por nenhuma razão em especial, tinha várias. Ela imitava-o logo a seguir, evitava-lhe o olhar desencantado. Dizer o quê? Fazer o quê?

Os passos de ambos iam sempre primeiro visitar o mar mais de perto, numa espécie de varanda. O ritual seguinte era decidir se davam o habitual pequeno passeio para o lado direito ou para o lado esquerdo. Um deles costumava tomar a iniciativa, sem motivos nem motivações.

Naquela tarde ficaram-se pela varanda sem saberem porquê. Talvez pelo céu cinzento, talvez pelo vento, talvez por nada...

Tinha começado a trovejar havia algum tempo. Ainda não chovia mas quase choviam faíscas no mar lá longe. As descargas desenhadas no céu e no mar arrepiavam mas eram um espetáculo magnífico! Os sons iam aumentando e ecoavam na arriba da esquerda. Do lado direito as gaivotas iam desaparecendo amedrontadas.

Um trovão maior fê-los recuar porque a varanda tremeu. Havia uma cobertura, uns passos mais atrás, e um muro alto. Foi o que os abrigou assim de repente de um desabamento súbito de águas. A intensidade foi tanta como brutal foi o trovão seguinte...

Imagine-se ficar cego e surdo de repente... Foi exatamente isso que aconteceu! O raio caiu precisamente onde estavam antes, num mastro de bandeira que aquela construção em forma de varandim ostentava frente ao mar! 

Passaram uns segundos... No meio da chuva cheirava a enxofre... 

Ela parecia sentir ainda o chão tremer à medida que recuperava a visão. Ele sentia-se surdo para sempre.

Depois do pânico inicial, as pessoas da esplanada começaram a acorrer ao local, ignorando a chuva torrencial, para ajudarem aquele casal que tinha caído de joelhos com o impacto elétrico. Encontraram-nos abraçados, encharcados e combalidos mas sãos e salvos. Principalmente do desencanto dos vinte anos. Aquele raio só rachou algumas pedras do chão mas matou de vez o desencantamento. Recusaram ambulâncias e assistência, encontravam-se bem, tinham-se reencontrado no meio de uma descarga de 30.000 amperes.

(imagem Pinterest)

 

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05
Abr17

Numa tarde nublada

Kalila

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Eram quatro da tarde de um dia qualquer. Nada que se marcasse no calendário, era apenas um vulgar dia da semana, nem quente nem frio, sem chuva nem sol, só com um céu encoberto, talvez de sentimentos, e uma brisa doce como o mistério daquela tarde sem sol.

Pela montra da loja vazia de clientes Denise apreciava aquela atmosfera da rua. Calma e suave com algo de desconcertante no vagar das pessoas sem sombras.

Aquela zona da baixa fica sempre estranha quando não há sol, parecem flutuar mistérios e sonhos pelas esquinas dos prédios pombalinos. As gentes passam, os turistas deambulam ou procuram coisas, entram a pedir informações, fica tudo diferente mas ninguém comenta... a falta do sol.

Do nosso famoso sol! Que tanta beleza empresta à nossa linda capital!

Denise não gostava de estar sozinha na loja, o patrão tinha ido beber café e demorava-se. Mas nem havia clientes...! Aproveitou para mudar a música de fundo para algo de que gostava mais.

Ah, assim sim! Uma música atual para revigorar a alma e o espírito! Céu encoberto na rua mas jovialidade dentro da loja!

Denise trauteava baixinho sem saber a letra, era hum-hum-hum, ham-ham-ham sempre controlando a porta a ver se entrava alguém. Calou-se de repente quando entraram dois jovens com ar de estrangeiros, visivelmente animados com o som. 

Denise preparou o melhor sorriso e o melhor inglês. Reparou que um deles procurava a saída do som com os olhos. Apontou-a. Ele sugeriu por gestos que aumentasse o volume. Assim fez.

E ante o seu espanto, e o do patrão que entretanto entrava, o rapaz passou a mão nos cabelos louros, sorriu e riu e tornou a sorrir e cantou, encantado, acompanhando a gravação. 

Fez-se luz naquela loja com a voz do próprio artista ao vivo! "Como era possível não o ter reconhecido?!" - pensava Denise, entre atrapalhada e estupefacta. O patrão sorria um sorriso meio parvo, o acompanhante acompanhava um tanto desafinado...

Naquela loja vendiam-se prendas e peças decorativas, o artista escolheu e pagou duas das mais caras. Ofereceu uma a Denise e outra ao patrão, tornou a sorrir e a rir e a sorrir de novo, apertou as mãos dos dois, abraçou cada um, dirigiu-se para a porta, despediu-se em mau português, hesitou... voltou... e disse várias coisas na sua própria língua, a mais gentil foi que tinha acabado de conhecer Lisboa só naquela loja. Tornou a dar abraços, tornou a sorrir e saiu para a tarde nublada de nuvens e plena de sentimentos.

(imagem mapio.net)

 

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